Procissão de Sto. António
13-06-2004
Está calor e cheira a manjericos. É em pleno Junho que se celebra esta procissão que sobe e desce a parte mais velha da cidade, as entranhas de Lisboa.
A multidão espera pelo santo fora da sua igreja. São centenas que inundam as ruas, e por momentos parece que o centro da cidade está no sítio onde sempre pertenceu.
O burburinho da multidão eleva-se enquanto esperam a imagem que faz o milagre do Sol, aumenta um pouco e logo depois o silêncio abate-se sobre todos.
Cheira a manjericos e está calor. A imagem e o cortejo já sobem. Duvido que aquele jeep entre nas ruelas do coração da cidade, mas um padre garante-me que se na minha máquina cabe tudo, o jeep também caberá nas ruelas.
Congregações e meninos de olhos tristes aceitam copos de água que os estabelecimentos lhes oferecem. Descem. O santo aproveita o ar puro para se livrar das traças e visitar os seus amigos por onde vai parando.
As beatas benzem-se, ajoelham-se, choram e acotovelam-se para chegarem à fila da frente e sentirem o bafo do santo casamenteiro. Sobem. Muitas resistem ao cansaço do calor e acompanham a procissão que cresce à medida que avança. Descem.
Gestos repetidos, olhares furtivos, suspiros de desejo, cheiros e odores, Alfama devolve tudo a dobrar e ninguém se inibe. Todos sobem.
Durante horas serpenteamos todos como se fossemos uma unica linha, atrás ou à frente, de uma imagem em quatro rodas conduzida. Desce-se. Os padres marcam o ritmo nas ruelas íngremes com uma ladaínha que, de tanto repetida, perdeu o valor e sabe que será um dia enterrada. Sobe-se.
O Sol não se esconde e várias vezes me pergunto se o milagre se deu, ou se será apenas este, o de ele existir e ser forte para fazer perder as forças a este cordão que sobe e desce, como se colocasse à prova a fé. Sobe-se ainda mais...
Finalmente desce-se, e desce-se e desce-se. Vislumbro o colar da cidade do presidente da câmara, olhar no chão, mãos em prece, como que a penitenciar-se da noite na discoteca, do perfume das mulheres e dos lábios cansados. Pode pensar-se que reza mas protege os olhos da falta de óculos de sol. Ah se o meu olhar matreiro tivesse um brilho beato! Faria milagres! Pode ser meu Santo António? Quem sabe o que terá pedido...
Alguém me pede uma fotografia como prova de que lá esteve. É preciso provar a fé que se tem, não vá o diabo tecê-las.
Celebra-se missa fora da Sé e todos querem ouvir.
Os miudos correm a gastar as moedas que saltitaram para os seus altares. Agradecem as guloseimas ao santo.
Alfama colorida e com cheiro a manjerico respira fundo, solta calor e é como um mar a correr para o rio.
Texto: Sofia Quintas